Ao contrário do que a capa pode dar a entender, este não é um livro de terror. Ou melhor, este é um livro sobre o pior dos terrores, aquele estritamente preso na realidade, que pode estar escondido atrás de cada porta e sorriso social.
Este é o romance de estreia da jovem autora portuguesa Valentina Silva Ferreira e é uma trama contemporânea, passada em Portugal (inclusive, como não poderia deixar de ser, tendo sido mantido o português português), e conta a história de Rossana, uma menina muito bonita e rica, mas que ao contrário da vida de fachada que parece ter e que é invejada por colegas e conhecidos, vive o inferno todos os dias. Desde a infância, é abusada física e psicologicamente pela mãe – que tem algum grau de sociopatia muito alto, diga-se de passagem – que, com inveja da beleza da filha, quer lucrar tornando-a modelo e extingui-la, para que ela possa ser por fim a mais bela (tem um equinho de Branca de Neve aqui, mas não há anões ou príncipes nessa história, apenas a inveja da beleza que vê outra florescer). Não bastasse isso, a esses abusos se juntam as sevícias sexuais praticadas pelo pai da menina, que não tem muito para onde correr.
Distúrbio parece um nome bastante adequado para o livro, pois a obra é profundamente perturbadora, dando aquela agonia de contar o que se passa nos segredos de uma família que quer passar a imagem de exemplar, mas está muito longe de ser saudável. A cada minuto, a vontade de entrar no livro, de tirar Rossana dali, de ligar para o Conselho Tutelar e pedir para resgatá-la, de dar uns tapas na cara deste ou daquele adulto que estão próximos, poderiam fazer algo e não o fazem. É torcer para que ela tome uma atitude, reaja, fuja de casa, procure a polícia, mas ao mesmo tempo saber que é refém do comportamento doentio dos pais e nada há que se fazer a respeito.
Claro que numa trama como essa, a tragédia vai piorando de segundo a segundo, bem como Rossana vai sendo morta aos poucos pelas circunstâncias e por outras coisas más que elas acabam por atrair. Até mesmo aquilo que deveria ser bom em sua vida torna-se veneno e tudo é uma caminhada inexorável para sua completa destruição.
(aqui entra só uma criticazinha: o fato do sadismo da mãe e os abusos do pai sobre Rossana nunca darem errado. Apesar deste e daquele personagem suspeitarem de alguma coisa, alguns adultos em posição de poder que poderiam fazer algo parecem não notar nada de estranho. Fora isso, Rossana não parece sofrer muito os efeitos físicos de todo o mal aplicado sobre seu corpo, mas detalhes).
O pior de tudo desse relato perturbador? A realidade. A cada página, lembrava das Rossanas que conheço da vida real: que não sofreram/sofrem todo aquele mal concentrado, mas vivem em terror psicológico, com abusos das pessoas que deveriam ser aquelas a protegê-las, presas em famílias doentias e que não sabem que podem pedir ajuda. Ou também daquelas de desconheço, como as meninas arrastadas pelas mães pela coisa pavorosa que são os concursos de pequenas misses (nunca me esqueço de um programa onde a mãe levava uma bebezinha de pouco mais de dois anos em um desses. A menina pegou birra o tempo inteiro, dava para ver que a roupa incomodava, que a situação era desagradável para ela. A mãe, perguntada se a filha gostava da atividade, respondeu de pronto: “ela adora!”), ou que, sofrendo abusos sexuais do pai, sofrem novamente com a conivência da mãe, muitas vezes para não prejudicar seu casamento ou imagem social. Talvez esse seja o pior ponto do livro: saber que pode haver uma Rossana (ou uma Perpétua, ou um Carlos) atrás de cada porta da vizinhança.
Um P.S.: Este livro, da maneira como é encaminhado, impossibilita um final feliz. Só que quem quer ver uma história com um final mais ou menos feliz com o mesmo tema, recomendo o filme Preciosa. É sobre uma menina em outro contexto social e em tudo oposta à Rossana – é negra, pobre, obesa e moradora dos subúrbios de NY, mas igualmente abusada pelos pais. E, infelizmente, dividem com outras tantas meninas, reais e imaginárias, a mesma história…
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Até a próxima!
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