Minha curiosidade literária me coloca em roubadas de vez em quando. Aliás, se forem pegar a lista de resenhas do site, dá pra ver algumas dúzias dessas roubadas, com resultados diversos. Quando comecei a ouvir falar de Cinquenta Tons de Cinza, pensei algo como: “corra, Bino, é uma cilada!”. Só que daí a febre foi crescendo, as pessoas foram falando mais, fui tendo mais informações e o bichinho da curiosidade começou a me picar. Ui.
Pensei que estivesse embarcando em mais um roubada, mas não: o livro é UMA DELÍCIA. Só que por motivos muito, muito errados (e nem tou falando da parte erótica, afinal, o repórter gostosinho tem lá sua razão).
Para quem não sabe ainda sobre o que se trata esse novo fenômeno editorial, é a história de Anastasia Steele, estudante, 21 anos, virgem, insegura e de baixa autoestima, que, às vésperas de sua formatura conhece o bonitão, gostosão e ricaço Christian Grey. Surge uma tensãozinha recíproca que evolui para romance, mas o sr. Grey é um camarada esquisito, desses que exigem que as pretendentes assinem um termo de confidencialidade antes de se entregarem aos seus encantos. Só que, ao contrário do que o leitor possa suspeitar, não se trata de uma ereção de 5cm – mas uma predileção por sexo sujo. E outras feridas emocionais que conheceremos, juntos de nossa inocente protagonista, que descobre ter uma periquita em chamas.
O livro é kitsch até a medula e um poço de humor involuntário. Sério, é o antídoto perfeito contra qualquer mau humor. A narrativa é ruim, o livro é mal escrito mesmo e a autora parece não estar nem aí, pelo contrário, é a lei do lulz. E pelo lulz, não dá para largar o livro até o final.
As passagens que eram para ser humorísticas, como a protagonista caindo de quatro ao entrar pela primeira vez na sala do galã, são só constrangedoras (e daria um ótimo argumento para filme pornô: pensei nas secretárias loiras peitudas entrando seminuas por cantos escondidos da sala e todo resto). Algumas que deveriam ser tocantes, sérias, sensuais, são engraçadíssimas. Vamos a alguns exemplos. Favor ler como o Marcelinho esses trechos escolhidos:
“Quando termino, entro no banheiro. Quero escovar os dentes. Olho a escova de Christian. Seria como tê-lo em minha boca. (…) Pego-a depressa, espremo a pasta nas cerdas e escovo os dentes rapidinho. Sinto-me muito travessa. É muita emoção”.
“Sinto meu rosto ficar novamente vermelho. Devo estar da cor do Manifesto Comunista”.
“Ele me mostra a lista. Meu inconsciente sai correndo aos gritos e se esconde atrás do sofá”.
“Em primeiro lugar, eu não faço amor. Eu fodo… com força”. O Mr. Catra aprova isso.
Sério, como não tinha lido isso até hoje? Aliás, o que você está esperando para sair correndo agora e garantir um exemplar dessa pérola da história da literatura mundial? Seríssimo, leitura IM PER DÍ VEL, garanto que o leitor não vai se arrepender, ainda mais se estiver atrás de gargalhadas! ÓBVIO que estou esperando ansiosa pelo segundo livro dessa delícia, porque se mantiver esse nível é diversão garantida…
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Agora a parte séria da resenha (porque não dava pra ficar só na piada, tem um aspecto mais sério do livro que precisa ser abordado):
A escrita é ruim, a narrativa é deficiente, a autora usa e abusa de frases feitas pescadas do lugar-comum (isso fica óbvio em alguns diálogos), mas os defeitos técnicos dão toda a graça involuntária da coisa. São poucos os livros ruins que conseguem usar isso como ponto forte e ficarem engraçados. Talvez porque a escrita seja despretensiosa (porque coisa completamente diferente é ler autor pretensioso que escreve mal pra caramba).
As cenas de sexo não são muito mais constrangedoras do que o resto do livro. Já li cenas melhores, tanto do ponto de vista erótico quanto do técnico, quanto piores, então não vejo o sexo e sua condução per se como um problema. Aliás, descrever sexo sem cair no grotesco ou no ridículo exagerados é um desafio para bons, médios e péssimos escritores.
(só um aparte ainda no tema: mas sexo idealizado e irreal também que é uma beleza, né? Primeira vez praticamente sem dor e com dois orgasmos, orgasmos fortes e fartíssimos em todas as relações, nenhum daqueles momentos constrangedores de intimidade em que independente da experiência das partes a coisa começa a dar errado… aham).
Agora, chamar o livro de libertino? Não mesmo. A relação entre os protagonistas é bem tradicional, para não dizer conservadora, mesmo com os detalhes de inspiração BDSM (e, sobre BDSM: a comunidade ficou revoltada com a vinculação do livro às suas práticas, que na narrativa aparecem bem deturpadas. Algum praticante de BDSM pode se expressar melhor nos comentários, mas o sr. Grey para mim não parece ter NADA de seguro, são e consensual – pilares da prática)…
Vejamos: uma moça virgem e que passa a ter uma vida sexual monogâmica extremamente convencional (aliás: querem algo mais conservador que a mocinha que se guarda virgem para seu príncipe encantado?). Um sujeito problemático e que já teve até muitas parceiras sexuais (claro, para essa mentalidade homem virgem é uma aberração, né), mas que achará sua donzela encantada e sairá, pela redenção do amor, da vidaloka. Quer casal mais tradicional e conservador que isso? Onde está a libertinagem nisso? Na moça em questão assumir que gosta de sexo? O prazer feminino é tão assustador assim em pleno 2012?
Aliás, um parêntesis sobre isso. Lá fora, os livros, explosão editorial, são chamados de “pornô para mamães”. As grandes consumidoras dos livros são mulheres casadas e com filhos, há notícias inclusive de um baby boom causado pela obra. Quanto a esse ponto, interessante que uma obra de ficção ajude mulheres a explorarem a própria sexualidade e terem uma vida mais plena. O livro pode ser tecnicamente péssimo, mas se consegue dialogar com a leitora dessa forma, cumpriu um bom papel. Uma pena não tê-lo cumprido em outras questões, também.
O conteúdo não é muito diferente do de um livro de banca, mas a editora maior, o acabamento e a venda retira um pouco desse estigma. Aliás, uma coisa que aconteceu em Crepúsculo (voltaremos a ele) e se repete aqui: se é para criticar o livro, que seja por suas falhas (que não são poucas) e não pelo público para o qual ele é dirigido. “Livro de mulherzinha mimimi”. Ué, e ser material para mulheres é ofensa ou demérito desde quando? De que forma o público-alvo diminui o material?
A parte que realmente vale uma crítica e uma reflexão:
Não sei se sabem de uma pequena trívia, mas o livro era originalmente um fanfic de Crepúsculo, adaptado para virar romance. Tanto que vários elementos da obra originária estão lá: dá para enxergar a Bella e o Edward nos protagonistas, temos a participação especial de Jacob e dos outros Cullen, a participação dos pais da Bella (a mãe ausente e o pai/padrasto que a criou)…
E, de novo, a glorificação de um relacionamento doentio. A eleição de uma relação que nada tem de romântica como ideal.
Para meu contentamento, Anastasia tem alguns pontos a seu favor em relação a Bella: apesar de ser ainda mais boba, ela tem uma vida própria, amigos próprios (ainda que poucos), planos para seguir uma carreira e desafia, conscientemente e em mais de uma ocasião, ao controlador Grey. Ela não abraça o estilo de vida do amado de cara, e talvez nunca o fará, ao contrário de Bella que se sente inferiorizada, não tem vida própria e não está muito aí para tê-la e quer seguir o estilo de vida de Edward (que significa morrer, afastar-se dos pais, entre outras coisas) imediatamente e sem pesar consequências.
Só que ambas são mulheres de autoestima baixa e que acabam nas garras de namorados controladores e abusivos. Aliás: aqui isso fica muito bem marcado nas entrelinhas: fosse Ana mais segura, teria dado um basta na relação mais cedo, pois ao contrário de sua inspiração Bella, ela até consegue enxergar bem que as coisas não estão nada certas. Só que ela tem uma visão tão ruim de si mesma que não consegue sair da arapuca emocional armada (o final é um bálsamo, mas como sabemos ser uma trilogia…).
E quanto a Grey… A própria Ana diz tudo quando afirma que ele precisa se tratar. É um homem ferido, sim, que sofreu abusos, sim (que fica implícito e explícito na trama), mas cuja persona não tem nada de romântico ou ideal para qualquer mulher. Ele vê a parceira como posse, como mais um brinquedo caro de sua coleção (e o fato de estar apaixonado não atenua em nada as circunstâncias), e deixa isso bem claro verbalmente e não verbalmente ao longo da trama. Como uma Barbie para quem se compra acessórios, ele equipa a vida dela de eletrônicos e luxos, mas como parte do “cuidar do que é seu”. Ele vigia a namorada de todas as formas, tenta podar a independência dela, quer controlá-la não só no Quarto Vermelho, mas em todos aspectos de sua vida. O “você é minha” não é só um arroubo romântico – ele a enxerga como posse, como propriedade, como objeto, não como alguém, dotada de personalidade, desejos, ansiedades e necessidades, para compartilhar a vida e o prazer sexual.
Agora, vem cá, esse sufocamento é romântico? É ideal? Ter um stalker, e não um companheiro, um sujeito que quer ser quase uma deidade onipotente (o dinheiro pode comprar muitas coisas), onipresente e onisciente da sua vida? Isso é bom, saudável?
Para nem falar da parte abusiva (e que, repito, não tem NADA A VER com o BDSM). Um sujeito que além de controlador ainda faz um jogo psicológico perverso para manter a namorada cativa e indefesa, que a disciplina pelo medo. Um sujeito que, fora do ambiente erótico e consensual, mais de uma vez parece perder o controle e por pouco não chegar à agressão física? Aliás, em toda a parte de controle, não deixar que ela respire, pense, aja, tenha amigos homens e que viva para ele não é sufocar? Isso é saudável, você, leitora, gostaria disso para sua vida?
É muito triste ver as leitoras acharem o livro romântico, quererem um sr. Grey para elas e tudo mais. O livro não chegará a esse ponto, claro, mas vejo o Grey como um desses sujeitos que, inconformados pela rejeição de uma parceira, a matam para que “ela não seja de mais ninguém”. Acho precipitado, como ouvi falar por aí, afirmar que “as mulheres modernas estão carentes e querem parceiros assim”. Ninguém quer alguém assim na própria vida, ou não deveria querer. Uma mulher deve ser senhora de si e não ser de ninguém senão dela mesma. Mesmo dentro de uma relação dom/sub (que tem um contexto muito específico, é consensual e onde todo mundo sabe muito bem o que está fazendo – e que não é o caso do livro, já que Ana não tem a menor ideia de onde está se metendo).
Esse tipo de relacionamento não é modelo. Não é romântico. Grey não precisa de uma namorada, parceira ou alguém para ter laços emocionais doentios, precisa é de tratamento, urgente. E a literatura, por mais comercial que seja, precisa de modelos um pouco mais saudáveis de parceiros e relacionamentos.
Voltando a um questionamento da primeira parte da resenha, só digo uma coisa: “corra, Ana, é uma cilada!”
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No nosso momento merchan, só digo uma coisa: LEIA ESSE LIVRO LOGO, É BOM DEMAIS (Livraria Cultura – Submarino)
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Até a próxima!
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