Continuando minha sina com Neil Gaiman – e com uma ligeira ajuda de Percy Jackson, vá lá, que tem uma temática um pouco tangencial – resolvi ler Deuses Americanos. Primeiro, para ver como o tema dos deuses antigos vivendo nos dias atuais nos Estados Unidos seria tratado por uma ótica mais adulta e segundo, por este ser considerado o melhor romance do autor.
Porque Neil Gaiman é um dos grandes escritores contemporâneos de ficção fantástica – e talvez o mais conhecido e popular deles. É referência obrigatória a qualquer um que queira conhecer o gênero e sua produção atual. Ele é um grande arquiteto de cenários e premissas, o que dá para reconhecer desde Sandman e em seus demais trabalhos, mas peca um pouco ao explorar todo o potencial de seus cenários, situações e personagens.
Comecei a leitura de Deuses Americanos trazendo comigo essa decepção dos trabalhos anteriores do autor: belíssimo cenário e trama inovadora e rica, mas pouco desenvolvimento.
(e, bom que se explique, “American Gods” porque li o original. O livro saiu no Brasil pela Conrad no começo da década, a edição esgotou e a editora passou por reformulação – ou seja, existe edição em português, mas rara e de difícil acesso.. Espero que alguma outra editora anime-se a comprar os direitos do Gaiman e republicar o livro, quem sabe?).
O livro narra a história de Shadow, um homem soturno que, ao sair de uma temporada na cadeia, é contratado pelo misterioso mr. Wednesday para ser seu segurança e fazer alguns outros tipos de servicinhos, pois uma Grande Tempestade se avizinha no horizonte, a luta final dos deuses novos e antigos pela posse dos Estados Unidos.
E então Shadow vai conhecendo deuses e deusas, alguns melancólicos, outros nem tanto, que saíram de suas terras natais nos corações e mentes de seus fiéis e foram para os Estados Unidos, mas agora estão sendo esquecidos e trocados por deuses mais modernos – a Televisão, a Informática, a Metrópole. À medida em que se mete com tramas celestiais e divinas, sua vida também vai sendo posta em risco e ele precisa tomar parte na batalha, tornando as coisas um pouco mais pessoais.
A reflexão da perda da tradição pelo consumismo é interessante. Não são apenas nossos deuses que trazemos conosco – e o alimento dos deuses é a prece, a lembrança, se os fiéis não oram mais e eles caem no esquecimento, são mortos – mas também nossas pequenas crenças pessoais, manias, danças, canções… Nossa cultura. Claro que a tradição cultural não é estática, cada invenção nova, ou cada contato entre povos, faz com que as coisas se alterem, mas ver sua cultura retirada de si é tão mortal quanto a retirada de uma planta do solo.
Claro, ÓBVIO que com isso não digo que a tecnologia, a mídia e a sociedade contemporânea são prejudiciais per se, mas anular a herança cultural por completo e consumir enlatados e empacotados só pode redundar em morte. O “american way of life” pode ter seus encantos, mas qual o preço a pagar pela renúncia das tradições antigas?
No decorrer da trama, há interlúdios explicando como as pessoas – e, por consequência, como os deuses – chegaram aos Estados Unidos e compuseram a nação. Imigrantes que desejam a terra nova (mesmo aqueles imigrantes que saíram da Sibéria milhares de anos atrás e foram os primeiros habitantes do continente), ladrões que desejam redenção, escravos a quem não foi dada escolha: nada muito diferente de NOSSA formação histórica, antropológica e cultural, para a qual damos tão pouco valor. Se é com desprezo que falamos que somos uma pátria de degredados, os primos do norte se orgulham dos seus fundadores, e isso é algo que deveríamos genuinamente aprender com eles.
Outra coisa bem interessante sobre o romance é que se trata de uma tradicional “road story” americana: Shadow e Wednesday caem na estrada, cruzam todo o país visitando cidades e pessoas e fugindo da perseguição dos novos deuses e de seus “agentes Smith”, até que, após alguns problemas mais sérios, Shadow é enviado para uma cidadezinha perdida no meio do nada, o que dá uma senhora paralisada na trama, que vinha num ritmo bom.
Sobre o Gaiman ser arquiteto de universos mas não explorar o potencial deles: aqui, este potencial é tão bem explorado quanto a trama permite e de uma maneira muito satisfatória. Há a presença dos deuses – a maioria deles de mitologias pouco conhecidas como a eslava ou mesmo a africana – e sua convivência com a modernidade explorada, há uma boa dose de mistérios que são desvendados ao decorrer da trama, que se não surpreendem o leitor ao menos são bem construídos e conduzidos ao longo da história.
Outro ponto que merece destaque é que Neil Gaiman é inglês e Deuses Americanos, que trata bastante do american way of life, foi escrito quando ele se mudou para os Estados Unidos, ou seja, também tem um grande trabalho de imersão do olhar estrangeiro para contar uma história local. Com sucesso.
Minha única crítica é que o livro é grande demais. Toda a parte 2 poderia ter sido limada sem dó nem piedade sem prejuízos para a trama, o que economizariam umas duzentas páginas no total. Tá, algumas passagens da vidinha comum são interessantes e acabam sendo encaixadas no resto da trama, mas a quebra de ritmo é tão forte que dá pra perceber que é silicone para o livro ficar maior (lembrando que o mercado americano de fantasia prefere obras grandes).
Mas vale a leitura, é um livro muito bem construído, história e cenário impecáveis. Livro muito bem indicado para quem lê em inglês, mas não vale as fortunas que andam cobrando pela edição em português. E Neil Gaiman, aqui, me convenceu, coisa que não tinha acontecido desde Sandman.
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Até a próxima!
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